A Competência do Juízo Universal da Falência para julgar questões que interfiram no patrimônio da Massa Falida ou da empresa em Recuperação Judicial

Para: International Journal of Insolvency Law

Por:
Alexandre Nasser de Melo
Suzana Manocchio
Ricardo Andraus
Inor Silva dos Santos
Felipe Pustilnick

RESUMO

O presente artigo se presta a demonstrar o conceito de Juízo Universal da Falência no sistema brasileiro, apresentando a prevalência do juízo falimentar em detrimento do juízo civil, trabalhista, fiscal e criminal, como forma de proteção do interesse coletivo dos credores, na ordem hierárquica estabelecida em Lei.

Também serão objeto do presente estudo os casos de exceção, em que ações dirigidas contra o grupo econômico falido, ou a empresa falida, estão sujeitos às regras ordinárias de competência, bem como à tutela especial concedida aos bens que são essenciais para a continuidade da atividade empresária em Recuperação Judicial.

1. Competência Jurisdicional na Justiça Brasileira

1.1.Princípio do Juiz Natural

É fácil conceituar a jurisdição no cenário jurídico brasileiro, porque o país adota critérios semelhantes aos adotados por outros Estados Democráticos de Direito, em especial, aqueles que são signatários do Pacto de San José da Costa Rica.

José da Silva PACHECO a define com precisão:

“[…] a jurisdição, como expressão da soberania do Estado e atividade específica do Poder Judiciário, encontra, na organização deste, as
limitações impostas pelos preceitos de competência interna, de modo que cada órgão judiciário, inclusive o juiz de primeiro grau, tem os seus poderes jurisdicionais restritos aos que a ordem jurídica lhe atribui.”[1]
(Pacheco, 2006, p. 29)

Destarte, o conceito de jurisdição no ordenamento jurídico brasileiro está atrelado ao conceito de limitação do poder do magistrado, que só pode ser exercido mediante prévia concessão e delimitação pela ordem jurídica.

Isto significa que há um juiz anteriormente especificado e designado pelo ordenamento jurídico para processar e julgar cada um dos tipos de demanda que porventura possam existir, através de definição objetiva de sua competência material para processar e julgar todas as causas que envolvam aquela determinada matéria, dentro do alcance de sua competência territorial (circunscrição).

Trata-se de princípio coadunado com o espírito constitucional (art. 5º, incisos XXXVII e LIII, da Constituição Federal de 1988), de proibir a existência de qualquer tipo de tribunal de exceção, também em consonância com o que dispõe o Pacto de San José da Costa Rica, do qual o Brasil é signatário.

Ademais, no caso do processo falimentar, cria-se previsibilidade extremamente salutar no âmbito jurídico, porque qualquer um dos credores ou interessados pode, sem qualquer esforço, conhecer qual juízo é competente para processar e julgar sua demanda em face da falida, o que é objeto do próximo tópico deste artigo.

1.2.Da fixação da competência – critério do principal estabelecimento

No ordenamento jurídico brasileiro, adota-se, desde o ano de 1890, o critério do principal domicílio do devedor para fixação da competência territorial nos processos de ordem falimentar.[2]

Idêntica posição foi adotada no Decreto-Lei nº 7.661/1945 e na Nova Lei de Falências e Recuperações Judiciais, Lei nº 11.101/2005.

Entretanto, ocorreram inúmeras discussões doutrinárias neste interregno, que culminaram na adoção de diversos posicionamentos diferentes pelo Poder Judiciário brasileiro acerca do efetivo alcance do conceito de “principal domicílio do devedor”.

Inobstante tenham sido travados intensos debates durante a confecção do texto da Lei de Falências e Recuperações Judiciais (Lei n° 11.101/2005), boa parte das questões problemáticas neste tocante não foram resolvidas pelo novo diploma, sendo que BEZERRA FILHO chegou a afirmar que “[…] o lamentável é que se tenha discutido durante onze anos para se chegar a pouquíssimo resultado positivo.”[3]

Portanto, as lacunas da lei, causadas pela lacuna do processo legislativo no Brasil, tiveram que ser supridas através da concentração da doutrina e da jurisprudência, no que toca a formação e o direcionamento da competência falimentar.

Isto se deriva do fato de que diversos devedores não estão dispostos a contribuir de bom grado com o trâmite do processo falimentar, criando obstáculos ao andamento processual e à atuação do juízo e dos Administradores Judiciais, através da blindagem patrimonial para esconder o patrimônio ilicitamente desviado da empresa e do grupo econômico, inclusive com a abertura de empresas fictícias em outros países e outros estratagemas inescrupulosos.[4]

Entretanto, a Lei n° 11.101/2005 manteve nas mãos do Juízo de primeiro o grau a possibilidade de decidir sobre a competência no âmbito do processo de falência, o que, no entendimento de Frederico Augusto Monte SIMIONATO, não se mostra adequado, porque, em seus dizeres:

“Esta sistematização poderia ter sido alterada, passando a competência para o Tribunal, que decidiria a questão, evitando a apresentação de recursos, com finalidades protelatórias. Assim, no direito falimentar italiano, a falência é declarada pelo Tribunal onde o empresário tem a sede principal da empresa”. [5]

Tal entendimento, embora busque conferir maior celeridade aos processos de falência, a nosso ver não se mostra adequado.

A Lei n° 11.101/2005 define, em seu art. 3°, o critério para fixação da competência territorial, da seguinte forma:

“Art. 3o É competente para homologar o plano de recuperação extrajudicial, deferir a recuperação judicial ou decretar a falência o juízo do local do principal estabelecimento do devedor ou da filial de empresa que tenha sede fora do Brasil.”

A avaliação de Sebastião José ROQUE, é de que há o risco que se aplique o entendimento de que o principal estabelecimento da empresa é na Comarca de sua sede, o que, de plano, cria problemas de aplicação e efetividade do processo falimentar em casos em que a empresa tem sede em uma cidade, mas a atividade preponderante se dá em outra, muitas vezes a milhares de quilômetros de distância.[6]

Nos casos em que a empresa, ou o grupo econômico, possuem diversas filiais, em inúmeras Comarcas, cria-se um problema adicional, porque a competência do juízo falimentar é fixada em um único juízo.

Manoel Justino BEZERRA FILHO (2007, p. 56), afirma que o problema surge do fato de o grupo econômico possuir diversos negócios e “em cada um deles, exercer grande número de atividades ou concentrar administradores, em cada um deles, com poder amplo de decisão”[7]

Tendo em vista que muitas vezes os administradores do negócio preveem a futura quebra e, fraudulentamente, passam a realizar blindagem de patrimônio ilicitamente desviado através da abertura de empresas e sociedades em outras localidades, tem-se dificuldade adicional a ser suprimida pela atuação do juízo e do Administrador Judicial.

Nas palavras do professor BEZERRA FILHO:

“[…] já preparando uma futura falência fraudulenta, o empresário abre diversos estabelecimentos e em todos eles exerce atividades determinantes e de peso, de tal forma que, não importa em qual juízo seja requerida sua falência, sempre argumentará que seu principal estabelecimento não é aquele, e sim o outro. Portanto, pode-se perceber desde já a importância de se determinar o principal estabelecimento. Sem embargo, se o juiz experimentado percebe que se trata de medida protelatória, a melhor opção é, desde logo, reconhecer tal fato e declarar a falência no processo que tem em mãos, como correta medida de política judiciária, sem embargo de a competência do juízo do principal estabelecimento, embora territorial, ser de natureza absoluta […]”[8]

Nos dizeres de Rubens Requião (1989, p. 81):

“[…] em matéria falimentar, portanto, o juízo competente não é o determinado pelo domicílio civil ou estatutário, mas pela localização do domicílio real, onde se situa o principal estabelecimento, como uma nau capitânia numa frota marítima.
[…] o local onde se fixa a chefia da empresa, onde efetivamente atua o empresário no governo ou no comando de seus negócios, de onde emanam as ordens e instruções, em que se procedem as operações comerciais e financeiras de maior vulto e em massa, onde se encontra a contabilidade geral.” (Requião, 1989, p. 81)[9]

A Corte do Superior Tribunal de Justiça, já adotou este entendimento em diversos casos, notadamente, na solução do Conflito de Competência entre juízos nº 1.799/PR, de relatoria do Eminente Min. Nilson Naves, cuja decisão foi publicada no Diário da Justiça da União em 09.09.1991 e que vem servindo de paradigma até os dias de hoje, embora tenha ocorrido substancial alteração na Lei de Falências, com o advento da Lei nº 11.101/2005.

Luiz TZIRULNIK(1994, p. 61-62), chama a atenção para fato relevante, de que, em muitos casos, não existe coincidência entre o principal estabelecimento e o estabelecimento social.

Em suas palavras:

“(…) cabe ainda salientar que nem sempre o ‘principal estabelecimento’ do comerciante, quando se tratar de sociedades comerciais, há de equivaler ao estabelecimento social, isto é, o local avençado em contrato social para servir de sede à sociedade”.[10]

Como podem ocorrer alterações de fato que poderiam, supervenientemente, alterar o local do principal estabelecimento da empresa em falência, e com o fim de prestigiar a segurança jurídica através da estabilização de um juízo, aplica-se à espécie o contido no art. 87 do CPC (1973), atualmente implementado com redação similar no art. 43 do CPC de 2015, que dispõe o seguinte:

“Art. 43. Determina-se a competência no momento do registro ou da distribuição da petição inicial, sendo irrelevantes as modificações do estado de fato ou de direito ocorridas posteriormente, salvo quando suprimirem órgão judiciário ou alterarem a competência absoluta.”

Isto significa que são desimportantes eventuais modificações de estado de fato ou de direito ocorridas após a fixação da competência, salvo quando alterarem a competência em razão da matéria ou da hierarquia.

Nelson NERY JÚNIOR e Rosa Maria Andrade NERY (1999, p. 2096), entendem que, após fixada a competência de um juízo territorial, eventual “alteração do domicílio da empresa durante o período crítico de sua insolvabilidade não implica necessariamente a alteração da competência do Juízo da falência”.[11]

Este tópico, referente à modificação da competência, será analisado detidamente em tópicos específicos, com relação à processos fiscais, trabalhistas e civis.

1.3. Da competência jurisdicional brasileira para processar e julgar falências de empresas estrangeiras que pertençam a grupo econômico sediado no Brasil

Em Outubro de 2013, o Grupo OGX ajuizou pedido de recuperação judicial[12] com a formação de polo ativo em litisconsórcio ativo, situação que já é antiga conhecida dos operadores de direito no Brasil.

Entretanto, com este pedido de RJ, surgiu situação que ainda não havia sido tratada pelos operadores do direito no Brasil: duas das quatro empresas que compunham o grupo econômico no polo ativo do pedido, são estrangeiras, sediadas na Áustria.

A inclusão destas empresas na formação do polo ativo, em litisconsórcio, foi baseada no argumento de que estas empresas eram simples meios utilizados para facilitação da obtenção de empréstimos no exterior, estando subordinadas ao controle da controladora sediada no Brasil. [13]

Conforme o pedido inicial, estas empresas não possuíam bens, atividade operacional e nem autonomia decisória, portanto, as quatro sociedades, para fins de fixação da competência jurisdicional (art. 3º, da Lei nº 11.101/2005), tinham seu principal estabelecimento na cidade do Rio de Janeiro – RJ.

O Ministério Público, fiscal da lei no Brasil, impugnou o pedido, afirmando que aplicar-se-ia ao caso o contido no art. 12, do Decreto-Lei nº 4.657, que determina que a obrigação, tendo se constituído no exterior, deveria lá ser cumprida, atendendo ao critério estabelecido no sistema de territorialidade dos efeitos da falência e que, por esta razão, as decisões do juízo poderiam operar efeitos somente dentro dos limites das fronteiras territoriais do Brasil.

O juízo da 4ª Vara Empresarial do Rio de Janeiro indeferiu o pedido de formação de litisconsórcio ativo, adotando a fundamentação do Parquet e afirmando que haveria ofensa à soberania da Áustria. Adicionalmente, afirmou que não teriam sido encontrados elementos suficientes para configurar a possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica destas empresas, o que impediria, na ótica do juízo singular, o deferimento do pedido em litisconsórcio ativo.

O grupo OGX recorreu desta decisão, através de recurso de Agravo de Instrumento endereçado ao Egrégio Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, afirmando que a competência prevista na Lei nº 11.101/2005 prevê que o Brasil tem jurisdição para processar e julgar recuperações judiciais em que o principal estabelecimento esteja em território nacional e que, as empresas sediadas na Áustria, detinham o centro de seus interesses nas empresas brasileiras, sediadas no Rio de Janeiro, local onde, de fato, ocorria a atividade preponderante do grupo econômico.

Com relação à eventual ofensa à soberania da Áustria, afirmou que posto que este país é signatário de acordo de cooperação judicial no âmbito das recuperações judiciais, poderia até mesmo aceitar a jurisdição brasileira, fundando seu pedido na necessidade de adoção de um sistema da universalidade dos efeitos dos processos de insolvência.

O Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, ao julgar o recurso, em Fevereiro de 2014, reformou a decisão de primeiro grau, para o fim de que as empresas austríacas pudessem ser incluídas em litisconsórcio ativo com as empresas brasileiras, sendo o primeiro caso documentado da espécie ocorrido no Brasil.

A decisão se funda no argumento de que as empresas sediadas na Áustria teriam sido criadas somente para o fim de financiar o grupo OGX, e, portanto, compartilhavam da mesma atividade empresarial e, as empresas brasileiras, eram as responsáveis pelo pagamento de créditos gerados no exterior, o que evidenciaria o fato da atividade principal ser desenvolvida no Rio de Janeiro.

Por fim, a r. decisão colegiada se fundou no fato de a Áustria possuir acordo de colaboração com outros Estados neste âmbito e que, eventual ofensa à soberania da Áustria, só poderia ser observada no caso de negativa deste País em aceitar a jurisdição brasileira no âmbito da cooperação internacional.

Desde então, vêm sendo travadas diversas discussões na Doutrina e na Jurisprudência neste sentido, entretanto, ainda não há uma unidade de posicionamentos apta a pacificar a matéria.

2. Conceito de Juízo Universal da Falência ou Recuperação Judicial

O instituto da falência, por si só, não poderia obter resultados profícuos caso estivesse sujeito às normas ordinárias de definição de competência, porque as inúmeras demandas em que as empresas, ou grupos econômicos, são parte, seriam processadas e julgadas de maneira esparsa.

Para que o instituto seja eficaz, se fez necessário criar o conceito de Juízo Universal da Falência ou Recuperação Judicial, em que se prestigia a reunião de todos os processos (ou quase todos eles) que envolvam a recuperanda ou a falida em um único juízo, universal, uno, indivisível e que se sobrepõe a qualquer outro juízo, com a atuação de um Administrador Judicial em todos eles.

Fábio Ulhôa COELHO, em seu preciso magistério, trás lição fundamental sobre o tema:

“O juízo da falência é universal. Isso significa que todas as ações referentes aos bens, interesses e negócios da massa falida serão processadas e julgadas pelo juízo perante o qual tramita o processo de execução concursal por falência. É a chamada aptidão atrativa do juízo falimentar, ao qual conferiu a lei a competência para conhecer e julgar todas as medidas judiciais de conteúdo patrimonial referentes ao falido ou à massa falida.”[14]

Rubens REQUIÃO não traz outro entendimento em seu magistério:

“Evita-se, na verdade, com a unidade e consequente indivisibilidade do juízo falimentar, a dispersão das ações, reclamações e medida que, conjuntamente, formam o procedimento falimentar, submetido ao critério uniforme do julgamento do Magistrado que superintende a falência e que preside a solução dos interesses em conflito com ela ou nela relacionados. Como bem descreve Piero Pajardi, a razão do sistema é evidente, pois concentra todo o contencioso e toda a atividade processual da falência no juízo falimentar, para manter sob sua unidade uma complexa estrutura jurisdicional, e assegura, nas suas várias fases de desenvolvimento, uniformidade de visão, síntese de direção e economia de condução.”[15]

E complementa:

“pela natureza coletiva do processo de falência e pelo princípio da par condicio creditorum todos os credores que ocorrem ao processo de falência devem ser tratados com igualdade em relação aos demais credores da mesma categoria. Somente a unidade e a universalidade do juízo poderiam assegurar a realização dessas regras”.[16]

A única maneira de garantir o rateio dentre todos os credores possíveis, de acordo com suas classes e disposições de preferência, é através de um único juízo de execução centralizador.

A universalidade do juízo falimentar consta da disposição legal vertida nos arts. 3º e 76, ambos da Lei nº 11.101/2005.

Diz o art. 76, da Lei nº 11.101/2005:

“O Juízo da falência é indivisível e competente para conhecer todas as ações sobre bens, interesses e negócios do falido, ressalvadas as causas trabalhistas, fiscais e aquelas não reguladas nesta Lei em que o falido figurar como autor ou litisconsorte ativo”.

Sendo assim, depois de determinada a competência de um juízo para processar e julgar a falência, ele se torna indivisível e, sua competência, é absorvente e atrativa.

Como leciona Walter T. ALVARES, “resta examinar a implicação básica deste fato e consubstanciada no seguinte: O juízo da falência é indivisível e sua competência é absorvente e atrativa.”[17]

Nas palavras de MANGERONA:

“Justamente o enunciado do art. 76 da LRE inicia-se prevendo que “o juiz da falência é indivisível”, o que nos leva a crer que o legislador sinalizava aí a necessidade de assegurar a todos os credores uma forma de tratamento igualitário, sendo que, uma vez apontada a insovência do devedor, a princípio não seria possível a satisfação integral de todos os credores, sendo necessário, portanto, prestar obediência ao princípio da par conditio creditorum.”[18]

Para Adriana Valéria PUGLIESI, a indivisibilidade do juízo falimentar surgiu em decorrência da necessidade de dar publicidade da falência a terceiros, para impedir que novos negócios fossem realizados com o devedor, de modo a preservar a segurança das relações mercantis. Cita o procedimento adotado em Veneza e em Gênova antigas, em que se quebrava a mesa do devedor em lugar público (banco rotto), para demonstrar à coletividade que o mercador não possuía mais condições de adimplir seus pactos. [19]

As demandas que não são processadas e julgadas no juízo universal da falência, são aquelas que não são voltadas ao adimplemento de obrigação líquida, portanto, as ilíquidas, geralmente em fase de processo de conhecimento, que têm sua tramitação no juízo comum, por força do contido nos arts. (art. 6º, §§ 1º, 2º e 7º) da LF. Contudo, tornando-se líquida a obrigação, deverá ser habilitada no juízo universal da falência sem dispensar a necessária intervenção do Ministério Público e do Administrador Judicial em todas as fases do processo.

Nos dizeres de Fabio Ulhoa COELHO:

“ações de conhecimento contra o devedor falido ou em recuperação judicial não se suspendem pela sobrevinda da falência ou do processo visando ao benefício. Não são execuções e, ademais, o legislador reservou a elas um dispositivo específico preceituando o prosseguimento (§ 1º)”[20]. (Coelho, 2005, p. 39)

Para Gladston MAMEDE, o juízo universal da falência deve ser compreendido como um juízo universal de execução coletiva, razão que justifica sua vis attractiva e indivisibilidade, ou seja, sua competência para processar e jugar todas as demandas que envolvam bens, interesses e negócios do falido, sem desrespeitar, contudo, as competências constitucionais dos juízos trabalhistas ou federais, bem como a competência preventa de outros juízos para causas ilíquidas. [21]

Carvalho de MENDONÇA, em citação poética, definiu o juízo falimentar como um “mar em que se precipitam todos os rios”. [22]

3. Conceito de Ativos da Massa Falida e de Patrimônio da Recuperação Judicial

3.1.Ativos da massa falida: Escopo, forma de reunião, alienação e destinação.

Um dos escopos do processo de falência é, nos dizeres de FACCIO e RIBEIRO NETO:

“No processo de falência, busca-se a satisfação dos credores, através da realização de ativos, que se inicia com a arrecadação, por parte do administrador judicial, de bens do devedor. Aliás, a arrecadação de bens (e de documentos) é uma das competências do administrador judicial no caso de falência, determinada pelo art. 22, inc. III, alínea f, da Lei 11.101/2005.
Ainda que em tese, os bens e documentos do devedor sejam arrecadados logo após a nomeação do administrador judicial, a arrecadação poderá ocorrer durante todo o curso do processo falimentar, conforme forem sendo localizados.”[23]

Desta forma, pode-se denominar de ativo da massa falida tudo aquilo que for arrecadado no trâmite do processo falimentar, que puder ser lançado a crédito da massa falida, a ser destinado para o pagamento de credores.

No que toca a falência, tão logo esteja assinado o termo de compromisso, o Administrador Judicial deve proceder a imediata arrecadação dos bens, por força do art. 108, da Lei n° 11.101/2005, verbis:

“Art. 108. Ato contínuo à assinatura do termo de compromisso, o administrador judicial efetuará a arrecadação dos bens e documentos e a avaliação dos bens, separadamente ou em bloco, no local em que se encontrem, requerendo ao juiz, para esses fins, as medidas necessárias.”

A arrecadação deve ser procedida com prioridade, antes mesmo de o administrador judicial analisar o processo e o Quadro de Credores ou ter contato com as demandas da Massa Falida, porque a lógica da inserção desta diligência de maneira imediata no processo falimentar, tão logo decretada a quebra e nomeado o administrador, está ligada à ideia de evitar que os administradores do negócio falido tenham tempo e condições de desviar bens, ocultando-os dolosamente em prejuízo da massa de credores.

Por esse motivo é tão importante haver sintonia entre o Juízo Falimentar e o Administrador Judicial, pois, uma vez decretada a falência, o AJ deve ter equipe preparada para fazer a arrecadação imediata de bens, muitas vezes em várias sedes e estados diferentes, de forma concomitante, demandando logística que deve ser preparada com dias de antecedência.

Isto constitui mais uma forma de proteção ao crédito dos credores insertos no Quadro Geral de Credores, verdadeiros destinatários do processo falimentar, que institui um juízo de execução universal.

Os bens podem ser arrecadados em grupo, em um único auto de arrecadação. Entretanto, os bens gravados com garantia real devem ser arrecadados separadamente, cada um em um auto de arrecadação exclusivo.

Nem todos os possíveis ativos são imediatamente realizáveis e, neste ponto, a atuação do AJ é primordial.

Por esta razão, o legislador consagrou a norma que determina que o Administrador Judicial deve atuar em todos os processos e demandas que envolvam a massa falida, tornando-o um verdadeiro fiscal da legalidade a favor dos credores da massa.

Além de processos judiciais, que poderão, condicionalmente, agregar algum ativo à massa falida, incumbe ao AJ, também, a função de analisar e exercer direitos da massa falida, visando a constituir a maior quantidade possível de ativos realizáveis, ou futuramente realizáveis.

Nesse ponto é fundamental o administrador judicial possuir em sua equipe profissionais habilitados para analisar a empresa de forma geral e verificar possíveis ações e procedimentos que possam ensejar em ativos para a Massa Falida. Essa equipe também deve analisar os passivos judiciais para verificar se estão corretos ou se podem ser objeto de redução. Vale destacar que com frequência se verifica a ocorrência de créditos habilitados já prescritos, sendo responsabilidade do AJ requerer seja reconhecida a prescrição.

Tão logo quanto possível, o AJ deve realizar o inventário da massa falida, passando a proceder a fase de liquidação dos ativos para pagamento dos passivos, respeitando, tanto quanto possível, e nos casos em que é viável, o princípio da continuidade da empresa.

Incumbe ao AJ proceder a venda dos bens, que dar-se-á, a título geral, de três maneiras distintas:

(a) A venda ordinária, regrada, prima facie, pela ordem de preferência listada na LRF em seu art. 142, constituindo a forma geral de alienação dos ativos da massa falida;

(b) A venda sumária, que ocorre através de autorização do juízo e concordância da Assembleia Geral dos Credores, situação na qual se pode operar a adjudicação de bens da massa por seus credores ou a venda a terceiros, desde que a AGC aprove tal medida e;

(c) A venda extraordinária, que ocorre em caráter subsidiário, de maneira peremptória, a requerimento do AJ dirigido ao juízo, sem que seja necessária a aprovação da AGC ou a observância de algum tipo de ordem de alienação, ou com a aprovação de dois terços da AGC, situação na qual o Presidente da AGC poderá requerer a venda diretamente ao juiz, através de petição devidamente fundamentada[24].

A venda ordinária, tipicamente adotada no curso da falência, é regrada pelo disposto no art. 142 da LRF, que dispõe:

“Art. 142. O juiz, ouvido o administrador judicial e atendendo à orientação do Comitê, se houver, ordenará que se proceda à alienação do ativo em uma das seguintes modalidades:
I – leilão, por lances orais;
II – propostas fechadas;
III – pregão.

§ 1o A realização da alienação em quaisquer das modalidades de que trata este artigo será antecedida por publicação de anúncio em jornal de ampla circulação, com 15 (quinze) dias de antecedência, em se tratando de bens móveis, e com 30 (trinta) dias na alienação da empresa ou de bens imóveis, facultada a divulgação por outros meios que contribuam para o amplo conhecimento da venda.
§ 2o A alienação dar-se-á pelo maior valor oferecido, ainda que seja inferior ao valor de avaliação.
§ 3o No leilão por lances orais, aplicam-se, no que couber, as regras da Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil.
§ 4o A alienação por propostas fechadas ocorrerá mediante a entrega, em cartório e sob recibo, de envelopes lacrados, a serem abertos pelo juiz, no dia, hora e local designados no edital, lavrando o escrivão o auto respectivo, assinado pelos presentes, e juntando as propostas aos autos da falência.
§ 5o A venda por pregão constitui modalidade híbrida das anteriores, comportando 2 (duas) fases:
I – recebimento de propostas, na forma do § 3o deste artigo;
II – leilão por lances orais, de que participarão somente aqueles que apresentarem propostas não inferiores a 90% (noventa por cento) da maior proposta ofertada, na forma do § 2o deste artigo.
§ 6o A venda por pregão respeitará as seguintes regras:
I – recebidas e abertas as propostas na forma do § 5o deste artigo, o juiz ordenará a notificação dos ofertantes, cujas propostas atendam ao requisito de seu inciso II, para comparecer ao leilão;
II – o valor de abertura do leilão será o da proposta recebida do maior ofertante presente, considerando-se esse valor como lance, ao qual ele fica obrigado;
III – caso não compareça ao leilão o ofertante da maior proposta e não seja dado lance igual ou superior ao valor por ele ofertado, fica obrigado a prestar a diferença verificada, constituindo a respectiva certidão do juízo título executivo para a cobrança dos valores pelo administrador judicial.
§ 7o Em qualquer modalidade de alienação, o Ministério Público será intimado pessoalmente, sob pena de nulidade.”

Destaca-se que com a entrada em vigor do Código de Processo Civil de 2015, a disposição que determinava a aplicação do CPC de 1973, fica suprida com a aplicação do codex posterior.

Com relação à venda extraordinária, o art. 144 da LRF regula a possibilidade de sua ocorrência, entretanto, parte da doutrina critica a possibilidade de ocorrência da venda extraordinária a pedido do AJ, porque, em seu entendimento, a análise da viabilidade da venda, a ser realizada pelo Juízo dentro da dicção do texto legal, é de caráter eminentemente patrimonial, razão pela qual aplicar-se-ia a vontade soberana da AGC e não a decisão do juízo.

Diz o art. 144 da LRF:

“Art. 144. Havendo motivos justificados, o juiz poderá autorizar, mediante requerimento fundamentado do administrador judicial ou do Comitê, modalidades de alienação judicial diversas das previstas no art. 142 desta Lei.”

O citado art. 144 não outorga a possibilidade de o Juízo autorizar a venda baseado no critério patrimonial, porque a dicção da norma é no sentido de que a venda extraordinária deverá ocorrer “havendo motivos justificados”, nada falando a respeito da questão patrimonial.

Dentro da área daquilo que pode se tomar como de possível ocorrência, uma enormidade de situações podem demandar a atuação peremptória do juízo falimentar, justamente para preservar os ativos da massa falida e o interesse dos credores.

A exegese desta norma, por mais que elástica, não concede ao juízo a possibilidade de decidir sobre questões eminentemente de cunho patrimonial, cuja competência recai sobre a AGC, mas tão somente autoriza a venda de bens e direitos de maneira extraordinária quando houver motivo para tanto.

A título de exemplo, citam-se ativos relativos a bens perecíveis e aqueles que tornar-se-iam sucata em pouco tempo, impedindo as demais modalidades de alienação, ou aqueles que estão causando danos a terceiros, que teriam que ajuizar demandas ressarcitórias em face da massa falida, ou aqueles cujos custos de depósito são superiores ao custo de alienação.

Neste tocante, o juízo falimentar e o AJ devem atuar em conjunto, buscando atuar de maneira a evitar o surgimento de novas demandas e situações que possam trazer morosidade na tramitação do processo ou prejuízo à massa falida.

3.2.Os bens na recuperação judicial – Alienações que são possíveis mediante fiscalização do juízo, em proveito do plano de recuperação

Na recuperação judicial ocorre situação bastante diversa da falência. Primeiro, porque não há afastamento dos administradores da empresa ou do grupo econômico de suas atividades e, segundo, porque não há arrecadação dos bens da recuperanda, que somente deverá deixar de onerar bens que compõem seu ativo fixo, quando eles estiverem inclusos no plano de recuperação. Para poder onerar os que não compõem o plano de recuperação, deverá a recuperanda apresentar razão plausível para a venda ao juízo, a quem incumbe autorizar, ou não, a alienação.

Os ativos que são alienados em razão da própria atividade da recuperanda, não necessitam de autorização judicial para serem vendidos, sob pena de impossibilitar a própria continuidade da atividade empresária, consoante exegese ortodoxa do art. 66 da LRF.

Entretanto, estes bens devem estar descritos no plano de recuperação a ser aprovado pela AGC.

Esta cautela decorre da necessidade de impedir que as recuperandas alienem dolosamente seus bens na fase de recuperação, visando prejudicar a massa de credores de uma possível futura falência, bem como evitar a dilapidação do patrimônio através de blindagem patrimonial ou desvios em favor dos sócios e administradores da recuperanda.

Humberto Lucena da Pereira FONSECA, entende que a solução para eventual abuso de direito no que toca a possibilidade de alienações sem autorização judicial, está prevista no art. 166, VII, do Código Civil, que trata da nulidade dos atos proibidos, caso daqueles que foram realizados sem autorização judicial, quando dependiam desta para ocorrer. [25]

Da mesma maneira, a própria LRF possui dispositivos que regram a nulidade dos negócios realizados em desconformidade com o processo de recuperação, que não são o foco deste artigo.

O art. 50 da LRF traz diferentes formas de recuperação, entre eles, o trespasse de estabelecimento e a venda de parte dos ativos da recuperanda, a fim de garantir fluxo de caixa para manter a continuidade da atividade empresária, em atenção ao princípio da continuidade da empresa.

O trespasse de estabelecimento, na norma anterior à Lei n° 11.101/2005, implicava na imediata falência daquele que trespassou o estabelecimento a outro empresário, ou grupo de empresários.

Com o advento da Lei 11.101/2005, o trespasse de estabelecimento passou a integrar os meios de recuperação de empresas. Entretanto, de pouca aplicabilidade, dada a possibilidade de assunção de obrigações de natureza tributária e trabalhista, por parte daquele que assumir o negócio. [26]

A LRF foi genérica ao definir a possibilidade de venda de parte dos ativos da recuperanda. No entendimento de Maria Celeste Morais GUIMARÃES, a redação genérica da legislação não contribui com a aplicação escorreita dos casos em que pode ocorrer a venda de ativos da recuperanda, porque a norma exige tão somente que sejam mantidas as capacidades de adimplemento das obrigações do plano de recuperação.[27]

Como solução dirigida a evitar a sucessão dos ônus e obrigações do estabelecimento, muitas vezes é realizada operação de Drop Down, ou transpasse para subsidiária, conhecido pelo brocardo “para evitar desnecessário anglicismo”, quando, antes mesmo da aprovação de um plano de recuperação, procede-se à transferência de bens da recuperanda para uma empresa constituída como UPI – Unidade Produtiva Isolada (através de integralização de capital).

Quando ocorre a venda judicial, se transferem as cotas da UPI para o comprador, isolando o ativo a ser transferido, acobertando-o com a proteção de que os ônus e obrigações não acompanharão a parte adquirida.[28]

Há quem, na doutrina, tome este procedimento como fraudulento em seu nascedouro, porque se presta a efetuar blindagem daquilo que deveria compor o ativo da recuperanda.

Todavia, fiscalização contida do juízo e do AJ como fiscais da aplicação do plano de recuperação, bem como a necessidade de aprovação pela AGC do plano para que ele surta efeitos, são suficientes para dirimir esta questão.

Nos dizeres de Paulo Fernando Campos Salles de TOLEDO e Bruno POPPA:

“Unidade do estabelecimento é exprimida pelo complexo de bens que o forma, jungidos sob uma comum destinação, que é a atividade produtiva, atributo da empresa. Isolada, por sua vez, parece indicar que se trata de um estabelecimento que seja distinto, ou segregável, do principal…”[29]

O legislador atribuiu como primária a tentativa de venda de bens da recuperanda (e da falida) em bloco, através do art. 140, da Lei n° 11.101/2005.

“Art. 140. A alienação dos bens será realizada de uma das seguintes formas, observada a seguinte ordem de preferência:
I – alienação da empresa, com a venda de seus estabelecimentos em bloco;
II – alienação da empresa, com a venda de suas filiais ou unidades produtivas isoladamente;
III – alienação em bloco dos bens que integram cada um dos estabelecimentos do devedor;
IV – alienação dos bens individualmente considerados.
§ 1o Se convier à realização do ativo, ou em razão de oportunidade, podem ser adotadas mais de uma forma de alienação.
§ 2o A realização do ativo terá início independentemente da formação do quadro-geral de credores.
§ 3o A alienação da empresa terá por objeto o conjunto de determinados bens necessários à operação rentável da unidade de produção, que poderá compreender a transferência de contratos específicos.
§ 4o Nas transmissões de bens alienados na forma deste artigo que dependam de registro público, a este servirá como título aquisitivo suficiente o mandado judicial respectivo.”

Esta opção foi tomada com a intenção de maximizar a potencialidade de resultados com a realização dos ativos, bem como da manutenção da atividade empresária por outro empresário, preservando, desta maneira, os interesses sociais inerentes ao procedimento de recuperação de empresas e falências e, embora a previsão legal seja direcionada ao processo de falência, não há óbice para sua aplicação subsidiária no âmbito da recuperação de empresas.

De forma geral, o art. 60 trata da venda das UPI, e, art. 66, da Lei n° 11.101/2005, trata da venda de bens do ativo permanente da recuperanda.

Pode se aplicar, subsidiariamente, o contido no art. 142 da LRF às recuperações, bem como, com a judicialização da venda dos ativos da recuperanda, também se opera o fenômeno da não sucessão pelo adquirente dos ônus e obrigações relativos ao estabelecimento ou bem adquirido.

Embora o art. 141, II, da LRF, trate especificamente sobre o processo de falência, no que toca a ausência de sucessão dos ônus e obrigações, a interpretação teleológica da Lei n° 11.101/2005 aproxima o contido no art. 60, que trata da recuperação judicial, ao art. 141, II.

Neste tocante, ainda há intenso debate doutrinário, sem que se tenha chegado à nenhuma conclusão concreta até o presente momento, causando desnecessária insegurança jurídica às empresas que optam pela recuperação como uma alternativa a quebra.

4. Conflitos de Competência

Entrando especificamente na seara do conflito de competência entre Juízos, necessário que se analise a competência do juízo universal da falência quando em conflito com os juízos cível, fiscal, trabalhista e criminal.

Em todos esses casos, quando a ação é anterior a decretação da falência, o entendimento dos Tribunais brasileiros têm sido no sentido de que não existe atração da ação anterior ao juízo universal. Implicam, sim, na determinação de atuação do Administrador Judicial nessas demandas e no exame do juiz falimentar da sua natureza, para o efeito de enquadramento dentre as ações que ficam suspensas.

Para as falências, a Lei 11.101/2005, é bem clara ao estabelecer a competência:

“Art. 76. O juízo da falência é indivisível e competente para conhecer todas as ações sobre bens, interesses e negócios do falido, ressalvadas as causas trabalhistas, fiscais e aquelas não reguladas nesta Lei em que o falido figurar como autor ou litisconsorte ativo.
Parágrafo único. Todas as ações, inclusive as excetuadas no caputdeste artigo, terão prosseguimento com o administrador judicial, que deverá ser intimado para representar a massa falida, sob pena de nulidade do processo.”

A exegese do art. 76 não deixa dúvidas sobre o alcance da universalidade do juízo falimentar, bem como da vis attractiva exercida por ele, o que vem refletindo no reconhecimento pelo Poder Judiciário, repetidas vezes, que o juízo falimentar prefere a qualquer outro nos processos líquidos.

4.1.Conflito de Competência entre Juízo Universal da Falência e Juízo Cível

O conflito de competência mais simples ocorre entre juízo falimentar e aquele juízo cível que é competente para tratar das ações que tenham a falida ou recuperanda como autoras, ou que foram movidas contra elas.

Qualquer dos casos não previstos em Lei e aqueles protocolizados antes da decretação da falência continuarão a correr normalmente nos juízos cíveis originários, desde que não interfiram diretamente nos bens da massa falida, ou seja, atos típicos do procedimento expropriatório das execuções ficam suspensos, devendo ser habilitados no juízo universal da falência.

Ocorre o conflito de competência quando um juízo cível decide pela constrição ou alienação de bem que compõe o ativo da Massa Falida ou que é essencial à continuidade das atividades da empresa em Recuperação Judicial. Nesse casos, a decisão final sobre o caso será do Juízo Universal da Falência, porque a competência especial definida em lei determina que o juízo falimentar atrai todos os processos líquidos contra a massa falida.

A partir do momento que se tenha uma decisão final liquidando o valor da dívida, o credor deverá habilitar seu crédito, para recebê-lo conforme a ordem estabelecida na Lei de Falências e isto é induvidoso.

Da mesma forma ocorrerá quando se tratar de bem essencial à continuidade dos trabalhos da empresa em Recuperação Judicial, cuja posse não poderá ser dela retirada por ação proveniente de juízo que não o competente para tratar de seu processo recuperacional.

4.1.1. Essencialidade de bens para a continuidade das atividades da empresa em recuperação

É necessário tomar especial cuidado em não permitir que os bens essenciais à atividade do devedor sejam onerados, vendidos ou perdidos judicialmente em demandas das quais as recuperandas façam parte, sob pena de inviabilizar a continuidade da atividade empresária e, portanto, a execução do próprio plano de RJ.

Neste sentido, a construção jurisprudencial brasileira é vasta no sentido de permitir a retenção, pelos devedores, dos bens essenciais à sua atividade, em atendimento do princípio da continuidade da empresa, durante o prazo a que se refere o art. 60, §4º, da Lei 11.101/2005.

Esta proteção é extensiva e se aplica, inclusive, a bens alienados fiduciariamente, como foi reconhecido nos autos de Agravo de Instrumento n° 0032031-6.2013.8.08.0048, julgado pelo Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo, em que se reconheceu a flexibilização da norma geral a este tipo de contrato.[30]

No julgamento do agravo de instrumento n° 70065381063, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul decidiu que o crédito garantido por alienação fiduciária não se submete os efeitos da recuperação judicial, entretanto, aplicando o § 3°, do art. 49, da Lei n° 11.101/2005, manteve a recuperanda na posse do bem, porque este era essencial à continuidade de sua atividade. [31]

O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, nos autos do Agravo de Instrumento n° 2211899552015816000, manteve a recuperanda na posse do bem essencial à continuidade de sua atividade, que era gravado com alienação fiduciária, na qualidade de depositária. [32]

Há que se dizer que a proteção dada aos bens alienados fiduciariamente a terceiros, se limita à manutenção da empresa em recuperação que está na posse do bem, mas não anula a existência válida e regular da própria alienação fiduciária e o crédito dela decorrente não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial.

Neste tocante, a Lei nº 11.101/2005 não é omissa, prevendo em seu art. 49:

“Art. 49. Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos.
§ 1o Os credores do devedor em recuperação judicial conservam seus direitos e privilégios contra os coobrigados, fiadores e obrigados de regresso.
§ 2o As obrigações anteriores à recuperação judicial observarão as condições originalmente contratadas ou definidas em lei, inclusive no que diz respeito aos encargos, salvo se de modo diverso ficar estabelecido no plano de recuperação judicial.
§ 3o Tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio, seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, observada a legislação respectiva, não se permitindo, contudo, durante o prazo de suspensão a que se refere o § 4o do art. 6o desta Lei, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial.
§ 4o Não se sujeitará aos efeitos da recuperação judicial a importância a que se refere o inciso II do art. 86 desta Lei.
§ 5o Tratando-se de crédito garantido por penhor sobre títulos de crédito, direitos creditórios, aplicações financeiras ou valores mobiliários, poderão ser substituídas ou renovadas as garantias liquidadas ou vencidas durante a recuperação judicial e, enquanto não renovadas ou substituídas, o valor eventualmente recebido em pagamento das garantias permanecerá em conta vinculada durante o período de suspensão de que trata o § 4o do art. 6o desta Lei.”

A norma é clara e de facílima aplicação: Durante o prazo de suspensão das obrigações da recuperanda, é defeso retirar da posse da empresa os bens essenciais à sua atividade, mesmo aqueles que são gravados com a alienação fiduciária e desde que devidamente comprovada a essencialidade de tais bens.

A Lei de Falências também determina, de maneira clara e de aplicação das mais simples, que o juízo universal da falência exerce vis attractiva e é verdadeiramente competente para decidir questões atinentes às recuperandas e os bens que compõem sua atividade.

4.2. Conflito de competência entre Juízo da Falência e Juízos Fiscais

Outra exceção à regra geral de atração e indivisibilidade do juízo falimentar, ocorre nas causas fiscais.

Primeiramente, há que se salientar que, no âmbito das recuperações judiciais, o crédito tributário não se submete aos efeitos da recuperação, conforme disposição do art. 187 do CTN, razão pela qual o plano de recuperação não pode conter disposição sobre créditos tributários e execuções fiscais, que não são suspensas pelo deferimento do processamento da recuperação (art. 6º, § 7º, da LRF). [33]

AYOUB e CAVALLI afirmam que:

“Se, no entanto, por um lado o crédito tributário não é afetado pela recuperação judicial, por outro ele também não interfere no processamento da recuperação judicial, no sentido de que o credor tributário não participa com os demais credores das etapas de apreciação do plano de recuperação judicial; isto é, não pode apresentar objeção ao plano e não participa da assembleia geral de credores (art. 41 da LRF). Ademais, a decisão que defere o processamento da recuperação “determinará a dispensa da apresentação de certidões negativa para que o devedor exerça suas atividades, exceto para contratação com o Poder Público ou para recebimento de benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, observando o disposto no art. 69 desta Lei”, conforme pode ler-se no art. 52, II, da LRF.”[34]

No que toca às falências, os Executivos Fiscais também mantêm seu tramite regular, na vara especializada e competente para julgar casos fiscais. Todavia, da mesma forma que os juízos cíveis, os fiscais devem liquidar o valor da dívida fiscal para que a mesma seja habilitada no quadro de credores.

Nesta toada, não é preciso perquirir longo caminho cognitivo para compreender que as execuções fiscais, naturalmente líquidas por sua própria natureza, ficam suspensas no prazo de 180 dias a que se refere o art. 6º, §4º, da Lei 11.101/20205, sendo defeso ao juízo exequente realizar atos típicos expropriatórios dos processos de execução, devendo se limitar a decidir questões sobre a higidez, valor, e demais características do crédito, inclusive para decretar sua prescrição e julgar embargos à execução e demais remédios jurídicos de mérito para, ao fim, habilitar o crédito no QGC do juízo universal.

O conflito de competência surge quando o juízo fiscal decide a respeito de ativos da Massa Falida. Nesses casos, a decisão final sobre o assunto será do Juízo Universal da Falência, aplicando-se, às ações fiscais, disposições bastante parecidas com as ações civis de modo geral.

4.3.Conflito de Competência entre Juízo da Falência e Juízo Trabalhista

O mais corrente conflito de competência é aquele entre o juízo falimentar e o trabalhista.

No Brasil, a organização da legislação trabalhista e dos tribunais que julgam esta matéria culminam na solução mais célere dos feitos desta natureza, fazendo com que em alguns casos a Reclamatória Trabalhista tenha seu procedimento finalizado antes da solução falimentar, o que permite que o juízo trabalhista tente levar bens da massa ou dos sócios falidos a leilão judicial. Todavia, essa questão é resolvida pela simples análise do texto legal.

Para fins de definir a competência para processamento e execução de créditos de natureza trabalhista, há que se observar a regra do art. 6º, §§, da Lei de Recuperação de Empresas, em conjunto com o que dispõe o art. 114 da CF de 1988, que determina, de modo geral, que a apuração do crédito trabalhista deve ser realizada pela justiça especializada, mas, a execução de quantia líquida e certa, deve tramitar pelo juízo concursal.[35]

Nos dizeres de MANGERONA:

“Assim, prolatada a decisão definitiva na vara especializada, bastará a simples comunicação do juízo concursal do quantum apurado, de modo que o crédito trabalhista seja inserido na relação de credores ou no quadro geral de credores – se já existente – independentemente de habilitação formal nos autos da recuperação judicial ou falência”.

Esta medida é necessária para salvaguardar o direito dos próprios credores trabalhistas, evitando que uns recebam seus créditos de maneira privilegiada em relação aos demais credores da mesma classe, o que é estritamente vedado pelo ordenamento falimentar.

No Brasil, ficou construída sólida posição jurisprudencial no sentido de que os créditos trabalhistas estão sujeitos à habilitação no juízo concursal da falência, entretanto, existem algumas exceções que serão adiante abordadas.

O próprio juízo do trabalho, notadamente nas instâncias superiores, vem reconhecendo a preferência do juízo falimentar.

Nos autos do Agravo de Petição n° 20160394990, o Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo reconheceu que o patrimônio da massa falida, por mais que estivesse em poder de integrantes da sociedade indevidamente, é de competência do juízo universal e concursal da falência e, os créditos trabalhistas, se sujeitam à habilitação e rateio na forma do que trata o art. 83 da Lei n° 11.101/2005.[36]

O mesmo Tribunal, no julgamento do Agravo de Petição n° 2016026329, decidiu que a competência para decidir sobre eventual responsabilidade dos sócios da massa falida, através da desconsideração da personalidade jurídica, é do juízo universal da falência, enquanto perdurar o processo de falência. [37]

O Egrégio TST, Corte Superior colegiada final, responsável pelo julgamento das ações de natureza trabalhista, tem entendimento pacificado neste tocante.

Nos autos de Agravo de Instrumento n° 101100-79.2008.5.01.0061, a Corte decidiu que os processos coletivos de execução, onde há concurso de credores, como a falência e a recuperação judicial, tal como a insolvência civil, podem ser processadas e julgados pela justiça de trabalho até a fase de liquidação, quando passam a ser de competência exclusiva do juízo falimentar. [38]

Em julgamento de Recurso de Revista, a mesma Corte também decidiu nesse sentido, definindo que os processos podem tramitar na justiça do trabalho tão somente quando são ilíquidos, mas quando tornam-se líquidos, deverão ser processados perante o juízo falimentar. [39]

Entretanto, nem em todas as situações o conflito de competência se resolvem nas instâncias ordinárias, gerando conflito de competência, a ser decidido pelo Superior Tribunal de Justiça.

A jurisprudência daquela Colenda Corte é pacífica em dirimir esta modalidade de controvérsia, prestigiando o juízo falimentar para recebimento e regular distribuição dos valores obtidos em hasta pública na seara trabalhista, de imóveis pertencentes a Massa Falida ou seus sócios, quando procedida a desconsideração da personalidade jurídica desses.

No julgamento do Conflito de Competência n° 115.768-SP, que tratava de ordem de levantamento de valores depositados no juízo trabalhista, em autos de execução individual, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que decretada a quebra da empresa, as execuções pendentes na Justiça do Trabalho devem prosseguir no Juízo Universal da Falência.[40]

Neste mesmo sentido, a Corte decidiu nos autos do CC n° 33.397-MG, consignando que eventuais bens e valores penhorados devem ser remetidos ao juízo falimentar [41], em posicionamento idêntico ao adotado no CC n° 46.928-SP. [42]

Embora esta seja a posição dos tribunais, mesmo daqueles que julgam a matéria trabalhista, as varas do trabalho de primeiro grau rotineiramente adentram a competência do juízo falimentar, fazendo surgir quantidade desnecessária de recursos e conflitos de competência para solucionar questão que já é pacificada e que decorre da mera aplicação teleológica do texto legal.

4.3.1. Possibilidade de ocorrência de decretação da desconsideração da personalidade jurídica no juízo trabalhista antes de a mesma decisão ocorrer no Juízo falimentar

Existe a possibilidade de o juízo trabalhista ter procedido a desconsideração da personalidade jurídica antes desse pedido ter sido deferido no juízo falimentar.

Nesta situação, o que se tem é que a execução deverá prosseguir em seus termos normais, sem a necessidade de que o crédito seja habilitado no juízo concursal.

Isto causa sério problema no desenrolar das falências, porque, levados bens à hasta pública, o resultado não entra como ativo da massa falida para pagamento dos credores, sendo pago o reclamante trabalhista autor da ação individual.

Agravando essa situação, existe a possibilidade de outros tantos credores da mesma ordem habilitarem seus créditos nos mesmos autos trabalhista, recebendo as quantias devidas a cada um, em detrimento da massa de credores devidamente habilitados no juízo competente.

Ademais, a norma legal é clarividente: A execução iniciada antes da quebra continua em seus trâmites normais e, caso se tenha êxito na desconsideração da personalidade jurídica na esfera trabalhista antes desse deferimento no juízo universal, há previsão de possibilidade de pagamento desse único credor individual autor da reclamatória. Entretanto, não há previsão legal que possibilite a habilitação de outros credores nesses mesmos autos. Não poderia ser de outra forma, uma vez que isso implicaria em claro prejuízo aos demais credores da Massa.

O que se verifica em processos dessa ordem é a necessária diligência do Administrador Judicial em requerer a desconsideração e um pedido liminar de indisponibilidade de bens contra os sócios falidos, quando existe a previsão legal para tal. Esse procedimento, quando deferido, suspende a possibilidade de o juízo trabalhista efetivar pagamentos a outros credores que requisitem a habilitação na reclamatório trabalhista.

Nestes casos, procedida a hasta pública do bem de propriedade do sócio falido e liquidado o crédito do exequente, o saldo remanescente deve ser necessariamente remetido ao juízo falimentar, para que componha os ativos da massa falida e se sujeite às normais gerais de rateio entre as demais classes de credores.

Isto porque, o juízo falimentar é uno, universal, indivisível e que tem preferência sobre qualquer outro, dada a sua capacidade de exercer vis attractiva, bem como da necessidade premente de observância do princípio do par condicio creditorum.

4.4.Conflito de Competência entre Juízo da Falência e Juízo Criminal

Em muitos casos, a crise econômico financeira causadora do pedido de recuperação ou da decretação da falência tem nascedouro em investigações criminais, nos casos em que fica evidenciada a participação do grupo de empresas e de seus sócios em crimes, como delitos de corrupção, lavagem de dinheiro, estelionatos, evasão de divisas, dentre outros.

Notadamente, desde 2013, vem ocorrendo no Brasil uma série de operação policiais que têm desvendado uma série de atos de corrupção, lavagem de dinheiro e demais crimes, que causaram efetivo e inequívoco dano ao erário, porque foram cometidos com participação direta de membros da administração pública direta e indireta, inclusive por membros dos poderes executivo e legislativo.

Quando isso envolve empresas falidas ou em Recuperação Judicial, existe o risco de que o juízo criminal determine o perdimento de bens e direitos do grupo econômico e de seus administradores, visando recompor o erário, mas, por outra via, causando inequívoco prejuízo à Massa de Credores, porque retiraria do juízo falimentar, efetivamente, parcela substancial de bens e direitos que compõem o ativo, que devem ser direcionada à coletividade de credores.

O que ocorre é que o juízo criminal busca dar efetividade à condenação penal consistente na “perda em favor da União (…) do produto do crime ou de qualquer bem ou valor que constitua proveito auferido pelo agente com a prática do fato criminoso”[43].

Contudo, como foi verificado nesse estudo, o juízo falimentar detém o poder de decidir a respeito de todo o patrimônio da massa falida, para o dividir entre os credores conforme estabelecido na hierarquia prevista na legislação falimentar.

Nossos Tribunais estabeleceram que o juízo da falência é competente para julgar até mesmo os crimes com conexão ao processo de falência, como o delito de estelionato ou de formação de quadrilha, quando praticados pelos sócios falidos ou administradores.[44]

Sendo assim, quando se configura conflito entre os juízos criminal e falimentar a respeito de atos que afetam o patrimônio da falida ou da recuperanda, deverá ser prestigiada a vis attractiva do foro da falência, que deverá decidir sobre a divisão do acervo de ativos da massa falida.

É esse o entendimento do Superior Tribunal de Justiça quando julgou o Conflito de Competência entre o juízo criminal e o falimentar, conforme verbis:

Não se está, com tal entendimento, afastando do juízo criminal a competência para decretar a perda, em favor da União, de bens decorrentes de crime. Apenas se está destacando que o ordenamento jurídico brasileiro elegeu o juízo falimentar como o responsável por arrecadar e destinar o patrimônio constitutivo da massa falida.
Consequentemente, após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, momento em que se aperfeiçoará o decreto de perda de bens em favor da União, cumprirá ao juízo falimentar – mediante provocação – indicar quem são os terceiros de boa-fé, que, à luz do art. 91, II, do CP, não poderão ser prejudicados pelo confisco-efeito da condenação penal. Reitere-se: o perdimento de bens, como efeito civil da sentença penal condenatória, não poderá prejudicar aqueles que se enquadrarem como terceiros de boa-fé, classificação essa que, no caso de haver a quebra das empresas titulares desses bens, deverá ser feita pelo juízo falimentar relativamente aos credores da massa.
Entender diferente seria desmerecer a universalidade e indivisibilidade do juízo falimentar. Seria, também, estimular a criação de dois concursos coletivos de credores: um perante o foro da falência; outro, na órbita do juízo criminal, a quem os diversos credores se dirigirão para avocarem a condição de terceiro de boa-fé. Seria, outrossim, desconsiderar que a jurisdição criminal não é a instância legalmente dedicada a discussões aprofundadas sobre temas extra-penais. A propósito, convém recordar que o art. 120, § 4º, do Código de Processo Penal confirma essa especialização da jurisdição penal, ao rezar que, no caso de complexos pedidos de restituição de coisas apreendidas, o juízo criminal deverá eximir-se de imergir nesses pleitos de natureza civil, remetendo as partes ao foro cível.
Além do mais, na linha dos argumentos acima, bem de ver que, havendo a falência das empresas titulares dos bens cuja perda, em favor da União, foi decretada pelo juízo criminal, a decisão acerca de atos necessários à conservação ou à alienação desses bens será da competência do juízo universal da falência, a quem, conforme já assinalado, está afetada a atribuição de traçar os rumos do patrimônio da massa falida.[45]

Em outro famoso caso no Brasil, nos autos nº 5046512-94.2016.4.04.7000/PR, que tramitam na 13ª Vara Federal de Curitiba, o Juiz Federal Dr. Sérgio Fernando Moro decretou o sequestro e confisco de um apartamento tríplex recebido pelo ex-presidente do Brasil, Sr. Luiz Inácio Lula da Silva, como forma de propina, tendo remetido ofício ao juízo falimentar, solicitando que o mesmo bem não fosse mais dado em garantia em processos cíveis.

O Juiz de Direito Dr. Daniel Carnio Costa, em decisão proferida nos autos nº 1030812-77.2015.8.26.0100, à fls. 56.139, nos autos de recuperação judicial do Grupo OAS, em nome de quem o bem se manteve registrado fraudulentamente, respondendo ao ofício do juízo da 13ª Vara Federal de Curitiba, decidiu que o bem não faria parte do rol de bens disponíveis à recuperanda, não tendo nenhuma relação com o plano de recuperação e que, portanto não existiria nenhum óbice para se permitir a constrição deste bem.

O fez porque o imóvel já não estava relacionado como ativo da Recuperação Judicial. Isso porque, a regra geral, é de que o juízo falimentar, como citado, exerce vis attractiva, por ser universal, indivisível e por ter preferência sobre todos os outros.

Naturalmente, eventual reposição ao erário ou multa aplicada em razão do cometimento de crimes devem, também, estar sujeitos ao rateio nos ditames da LRF, porque não é plausível prestigiar o recebimento do Estado fora do juízo concursal, em detrimento de todos os outros credores formadores do Quadro Geral de Credores.

As Ações de Improbidade Administrativa, embora sejam julgadas no âmbito da jurisdição cível, tem caráter eminentemente condenatório sancionatório, razão pela qual equiparam-se às criminais. Sobre essa questão, em outro julgado envolvendo a massa falida do Banco Santos, ocorreu Conflito de Competência entre o juízo universal da falência e o juízo da vara da fazenda pública, que determinou a indisponibilidade de bens da massa falida e dos sócios. O Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o Conflito de Competência n° 112516-SP, decidiu que a competência, com a decretação da quebra, é imediatamente carreada ao juízo falimentar.[46]

CONCLUSÃO:

O que se conclui através do presente estudo, é que, na busca da garantia do crédito dos credores, instituiu-se o Juízo Universal da Falência, que tem preferência contra qualquer outro juízo e exerce inevitável vis attractiva, que altera substancialmente as regras ordinárias de fixação de competência na jurisdição brasileira.

Ficou evidente, pela doutrina e jurisprudência, que o Magistrado do Juízo falimentar dará a decisão definitiva a respeito de constrição sobre bens que afetem o patrimônio da Massa Falida ou sobre bens essenciais à continuidade da empresa em Recuperação Judicial, mesmo que tenham que adentrar na competência de juízos cíveis, fiscais, trabalhistas ou criminais.

Conclui-se, também, que só é possível outorgar eficácia a este juízo universal, quando houver a atuação competente e precisa do Administrador Judicial e sua equipe, com o fim de garantir a arrecadação da maior quantidade de ativos, diligenciando pela responsabilização pessoal do falido ou do sócio da recuperanda quando ficar comprovada fraude, desvio de patrimônio ou confusão patrimonial.

Verifica-se, então, que o Juízo Universal tem a finalidade de proteger os ativos da massa falida e da recuperanda tanto quanto possível, evitando assim a frustração dos credores no recebimento de seus créditos, bem como na proteção dos bens essenciais à continuidade da atividade empresária, sem os quais, haveria efetivo prejuízo da massa de credores e da viabilidade da recuperação.

[1] PACHECO, José da Silva. Processo de recuperação judicial, extrajudicial e falência: em conformidade com a lei nº 11.101/2005 e a alteração da lei nº 11.127/2005. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 29.

[2] Decreto nº 917, de 1890, art. 4º: “A fallencia será declarada pelo juiz commercial em cuja jurisdicção o devedor tiver seu principal estabelecimento ou casa filial de outra situada fora do Brazil”.

[3] BEZERRA FILHO, Manoel Justino. Lei de recuperação de empresas e falências comentada. 4. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: RT, 2007. p. 50.

[4] BEZERRA FILHO, Manoel Justino. Lei de recuperação de empresas e falências comentada. 4. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: RT, 2007.

[5] SIMIONATO, Frederico Augusto Monte. Tratado de direito falimentar. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 44.

[6] ROQUE, Sebastião José. Direito de Recuperação de Empresa. São Paulo: Ícone, 2005.

[7] BEZERRA FILHO, Manoel Justino. Lei de recuperação de empresas e falências comentada. 4. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: RT, 2007. p. 56.

[8] Idem.

[9] REQUIÃO. Rubens. Curso de direito comercial. 11. ed., São Paulo: Saraiva, v. 1, 1989. p. 81.

[10] TZIRULNIK, Luiz. Direito Falimentar. 3. ed., ver. e atual., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. p. 61-62.

[11] NERY JÚNIOR, Nelson. NERY, Rosa Maria Andrade Nery. Código de Processo Civil Comentado. 4. ed.São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 2096.

[12] Autos nº 0377620-56.2013.8.19.0001, em curso perante a 4ª vara Empresarial da Comarca da Capital do Estado do Rio de Janeiro.

[13] In REVISTA COMERCIALISTA, v. 5, n.13, 2015. O caso OGX e a questão do ajuizamento de recuperação judicial de sociedades estrangeiras no Brasil. CAMPANA FILHO, Paulo Fernando. p. 28-

[14] COELHO, Fábio Ulhôa. Comentários à nova Lei de Falências e de Recuperação de Empresas. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, fl. 199.

[15] REQUIÃO, Rubens. RT 906, pag. 71, 12/2002.

[16] REQUIÃO. Rubens. Curso de direito comercial. 11. ed., São Paulo: Saraiva, v. 1, 1989. p. 87.

[17] WALTER T. ALVARES, Direito Falimentar, 6ª ed. Sugestões Literárias, 1977, n] 169, pág. 162.

[18] MANGERONA, Filipe Marques. Competência dos processos falimentares e recuperacionais.In: COSTA, Daniel Carnio (Coord.). Comentários completos à lei de Recuperação de Empresas e Falências. v. 1. Curitiba: Juruá, 2015. p.79- 81.

[19] PUGLIESI, Adriana Valéria .Direito Falimentar e Preservação da Empresa. São Paulo: QuartierLatin, 2013. p. 256.

[20] COELHO, Fábio Ulhoa. Comentários à nova lei de falências e de recuperação de empresas. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 39.

[21] MAMEDE, Gladston. Direito empresarial brasileiro: falência e recuperação de empresas. São Paulo: Atlas, 2006. v. 4, p. 312.

[22] Citado por AMADOR PAES DE ALMEIDA, Curso de Falência e Concordata, 11ª ed. Saraiva, 1992, n] 66, pág. 137.

[23] FACCIO, Valdor. RIBEIRO NETO, José Nazareno. Realização do ativo – venda ordinária e extraordinária – leilões – modalidades.In: COSTA, Daniel Carnio (Coord.). Comentários completos à lei de Recuperação de Empresas e Falências. v. 3. Curitiba: Juruá, 2015. p.141.

[24] art. 144, da Lei n° 11.101/2005.

[25] FONSECA, Humberto Lucena da Pereira. Comentário ao artigo 66 da Lei 11..101/2005. Osmar Brina Corrêa-Lima e Sérgio Mourão Corrêa-Lima (Coordenadores). Comentários à nova Lei de Falências e Recuperação de Empresas. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 452.

[26] TOLEDO, Paulo Fernando Campos Salles de; POPPA, Bruno. UPI estabelecimento: uma visão crítica.In:TOLEDO, Paulo Fernando Campos Salles de; SATIRO, Francisco (Coord.) Direito das Empresas em Crise: problemas e soluções. São Paulo: QuartierLatin, 2012, p. 273-275.

[27] GUIMARAES, Maria Celeste Morais. Comentário ao artigo 50 da Lei n. 11.101/05. Osmar Brina Corrêa-Lima e Sérgio Mourão Corrêa Lima (Coordenadores). Comentários à Nova Lei de Falência e Recuperação de Empresas. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 362.

[28] TEPEDINO, Ricardo. O trespasse para subsidiária (Drop Down). In:CASTRO, Rodrigo R. Monteiro de; ARAGÃO, Leandro Santos de (Coordenação). Direito Societário e a Nova Lei de Falências e Recuperação de Empresas. São Paulo: QuartierLatin, 2006, p. 64.

[29] TOLEDO, Paulo Fernando Campos Salles de; POPPA, Bruno. UPI e Estabelecimento: uma visão crítica. In:TOLEDO, Paulo Fernando Campos Salles de; SATIRO, Francisco (Coord.). Direito das Empresas em Crise: problemas e soluções. São Paulo: QuartierLatin, 2012, p. 277.

[30] TJ-ES – AI: 00320317620138080048, Relator: ANNIBAL DE REZENDE LIMA, Data de Julgamento: 01/03/2016, PRIMEIRA CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 08/03/2016.

[31] TJ-RS – AI: 70065381063 RS, Relator: Elisabete Correa Hoeveler, Data de Julgamento: 24/07/2015, Décima Terceira Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 28/07/2015.

[32] TJ-SP – AI: 22118995520158260000 SP 2211899-55.2015.8.26.0000, Relator: Edgard Rosa, Data de Julgamento: 22/10/2015, 25ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 24/10/2015.

[33] AYOUB, Luiz Roberto. CAVALLI, Cássio. A construção jurisprudencial da recuperação judicial de empresas. 3. ed., rev., atual. ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 51.

[34] Idem.

[35] MANGERONA, Filipe Marques. Competência dos processos falimentares e recuperacionais.In: COSTA, Daniel Carnio (Coord.). Comentários completos à lei de Recuperação de Empresas e Falências. Curitiba: Juruá, 2015. p.79- 81.

[36] TRT SP Ag Pet 20160394990 RELATORVALDIR FLORINDO Pub 20/06/2016.

[37] TRT SP Ag Pet 20160206329 RELATOR(A) MARIA DE LOURDES ANTONIO DATA DE PUBLICAÇÃO: 13/04/2016.

[38] ARR – 101100-79.2008.5.01.0061, Relator Ministro: Alberto Luiz Bresciani de Fontan Pereira, 3ª Turma, Data de Publicação: DEJT 19/02/2016.

[39] RR – 1257-06.2010.5.04.0024, Relatora Ministra: Maria de Assis Calsing, 4ª Turma, Data de Publicação: DEJT 28/08/2015

[40] STJ – CC: 115768, Relator: Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, Data de Publicação: DJ 14/03/2011.

[41] AgRg nos EDcl no CC n. 33.397-MG, relator Ministro Ari Pargendler, DJ de 5.5.2003.

[42] EDcl no AgRg no CC n. 46.928-SP, relator Ministro Castro Filho, DJ de 5.4.2006.

[43] art. 91, II, “b”, do Código Penal.

[44] RHC 18643/MG, julgado pelo STJ em 19/04/2007 e HC 85147/SP, julgado pelo STJ em 18/07/2007.

[45] STJ – Conflito de Competência: 76861 SP 2006/0280806-2, Relator: Ministro MASSAMI UYEDA, Data de Julgamento: 13/05/2009, S2 – SEGUNDA SEÇÃO, Data de Publicação: 20090615. DJe 15/06/2009.

[46] STJ – CC: 112516, Relator: Ministro HAMILTON CARVALHIDO, Data de Publicação: DJe 02/08/2010.


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